Bela Vista: Bairro teme mais violência

No final da semana passada, três dias de confrontos incendiaram o bairro que há anos mantém a revolta em lume brando. Os mais atentos começaram a desconfiar quando souberam que havia miúdos a encher garrafões de água na bomba de gasolina ali perto. Os mais perspicazes fizeram as contas e juntaram ao combustível a morte de três rapazes da Bela Vista no espaço de ano e meio. 'Toninho', 23 anos, foi baleado pela GNR durante uma perseguição no Algarve, a 30 de Abril. Tinha acabado de tentar roubar uma máquina multibanco. 'Seedorf', 22 anos, morreu da mesma maneira, em Fevereiro, na estrada de Palmela para Setúbal, num Audi A6 roubado. 'Drogba', da mesma idade, desapareceu num acidente de automóvel em Novembro de 2007, também perseguido pela polícia.

Na quinta-feira, 5 de Maio, depois de enterrar 'Toninho', o padre Clementino Alves recebeu um telefonema que o fez sair da igreja e subir até ao bairro. A guerra estava a começar. Primeiro foi a multidão de rapazes e raparigas, vindos de várias zonas, na avenida principal à frente da velha esquadra, que funciona no rés-do-chão de um dos prédios amarelos. A seguir, começaram os peões com as motos e os carros. Depois, os insultos. Os polícias assistiam a tudo da varanda. No dia seguinte, aos caixotes de lixo e carros a arder e aos cocktails molotov, juntou-se um tiro de caçadeira contra a esquadra.

A reacção contida da polícia - que reforçou o efectivo local com o Corpo de Intervenção, para mostrar músculo, e se limitou a acções cirúrgicas de detenção de três suspeitos (um por participação em motim, outro por injúrias e o terceiro por conduzir alcoolizado) - foi elogiada a nível político e não só. "Foi o melhor que fizeram", diz uma moradora, sob anonimato. "Com as armas que há por aí isto tinha sido uma tragédia".

É impossível fazer o inventário, mas além das caçadeiras usadas pelos grupos de assaltantes e de uma quantidade de dinamite que - avisam moradores - estará nas mãos de jovens, continuam por encontrar as duas pistolas-metralhadoras que, em Maio do ano passado, desapareceram da esquadra da Bela Vista. "Foi instaurado procedimento judicial para apurar as responsabilidades", admite fonte da PSP.

"Parece que isto tudo é por causa do 'Toninho'. Mas não é. Quer dizer, não é só", explica, hesitante, outra moradora do bairro, que também pede para não ser identificada. Uma vez mais, nada é o que parece. Nem 'Toninho'. A família, que há três anos já perdera uma filha assassinada pelo marido, defende-o e diz que o seu único crime foi conduzir sem carta. A polícia tinha-o referenciado por participação em vários assaltos violentos nos últimos 10 anos. Na Segurança Social havia mais do que um processo por violência doméstica. Junto à campa, no dia do funeral, estavam quatro namoradas a chorar. E no pátio do bloco de apartamentos onde morava, perto da PSP, continua parado o Mercedes topo de gama que usava, já com dois vidros partidos.

Os netos da CREL

Raparigas, carros e dinheiro costumam ser uma mistura explosiva. Mas na Bela Vista podem tornar-se muito mais do que isso. "Elas estão a ganhar força. Algumas já são piores do que os rapazes e estão a ir atrás do que querem", admite o responsável de uma das 30 e poucas associações que funcionam no bairro. Mas eles - os tais que roubam para comprar roupa, telefones, jóias, carros e tudo o mais que possa impressionar as miúdas - ainda são a maioria dentro dessa minoria que, dizem as associações, "escolheu o caminho errado". O diagnóstico está feito há muito (boa parte dos elementos do gangue que aterrorizou a CREL em 2000 eram miúdos da Bela Vista), os tratamentos vão sendo aplicados, mas os resultados tardam. Neste bairro, as crianças ainda decidem o seu futuro aos 13 anos.

O Mercedes à porta de casa de Toninho

Alguns dos miúdos que agora queimam caixotes de lixo e atiram bombas incendiárias são pouco mais velhos do que isso. Tal como os que dividem um dos principais pontos de venda de droga do bairro, organizados por turnos: um grupo de manhã, outro à tarde, sentados ao sol e à sombra, não muito longe da PSP, mas muito perto de lucros de centenas de euros por hora graças à cocaína. E os que procuram a droga escondida nas árvores depois das rusgas policiais. E os que disputam território e protagonismo, quase sempre de forma violenta. E os que às quatro da madrugada vagueiam sem destino pelas ruas desertas como se fossem três da tarde e tivessem acabado de sair da escola, onde já não vão. "São os netos da CREL", conclui fonte da PJ. A PSP é, ao mesmo tempo, a vizinha do lado e o pior inimigo dos rapazes da Bela Vista. Alguns agentes moram no bairro e vivem a tensão dos dois lados. Todos os dias.

"O ambiente exerce uma pressão enorme", admite ao Expresso a responsável de uma associação. "Muitos pais não sabem ler nem escrever, outros tantos não fazem nada, alguns trabalham nas obras e ganham mal, outros vendem droga. A lição mais fácil que estes miúdos podem tirar é que a escola não é necessária e trabalhar também não. Há formas mais rápidas de ganhar dinheiro e ter tudo o que querem. É contra esta mentalidade que temos de lutar todos os dias". Os que não se perderam são, por estes dias, actores secundários, sejam eles políticos, sociólogos, jogadores de futebol, cabeleireiros ou polícias. "Pessoas que apenas querem viver tranquilas", diz a responsável.

Ao fim da tarde, perto da zona azul do bairro, uma ilha dentro da ilha, vê-se o sol desaparecer no horizonte, para lá de Tróia e da baía de Setúbal. É uma das melhores vistas da cidade. As últimas noites foram tranquilas, mas há quem fale de uma paz podre. Com um café à frente, um morador do bairro avisa que da próxima vez tudo pode ser pior. "Isto acontece por ciclos. Foi mais grave do que em 2002 e o que aí vem talvez seja muito pior". Há sete anos, quando Toni, um rapaz do bairro de 24 anos, tentava apaziguar uma discussão, levou um tiro da polícia. Nessa altura, depois de uma onda de comoção que varreu a Bela Vista, também as autoridades e o Ministério da Administração Interna prometeram erradicar a violência.

Fonte: Expresso